A dança dos hormônios não é só fonte de desprazeres. Cada vez mais as mulheres — e a ciência — descobrem que a inconstância própria da natureza feminina não precisa ser negada.
Indesejável, perturbadora, desagradável, dolorida e embaraçosa. A menstruação é um fenômeno amaldiçoado em diferentes épocas e culturas.
As instabilidades do ciclo hormonal são acusadas de trazerem toda sorte de incômodos: cólicas, irritabilidade, enxaquecas, ansiedade, fome incontrolável, choro.
Convenhamos que nada disso combina com a mulher que se espera hoje: a esposa impecável, a profissional que dá conta de tudo, a mãe onipresente, o objeto de desejo sexual permanente.
Diante dessa demanda, a chegada dos anticoncepcionais de uso contínuo, que suspendem o sangramento mensal até segunda ordem, foi uma bênção.
As pílulas e os implantes, com suas doses diárias e sempre constantes de hormônios, achatam as curvasda montanha-russa de humores com que as mulheres convivem desde que Eva menstruou.
Só que, nos últimos tempos, a maré vem mudando. ‘‘As pacientes têm procurado métodos que não bloqueiam o eixo hormonal, como o DIUs e a camisinha’’, avalia Marina Gonzales, ginecologista e obstetra da Clínica Célula Mater.
Para ela, essa mudança de comportamento surge do desejo de uma vida menos regida por substâncias químicas sintéticas e mais próxima às leis da natureza.
A partir desse novo olhar, é interessante atentar para pesquisas que, desde o início dos anos 1990, investigam as diferenças entre homens e mulheres.
O estudo de como o ciclo menstrual afeta o cérebro tem sido uma das linhas para entender o que faz de um homem um homem, e de uma mulher, uma mulher.
E eureca: os altos e baixos do estrógeno e da progesterona promovem pequenas transformações cerebrais, que exacerbam ou inibem certas características.
Hormônios!
Sim, ficamos mais irritadas quando esses hormônios caem, provocando o sangramento.
Sim, nos sentimos mais cansadas, ansiosas, menos pacientes, mais sensíveise propensas ao choro.
Sim, queremos ficar no nosso canto, o corpo fica mais dolorido, inchado.
E, sim, algumas de nós têm esses sintomas muito exacerbados e precisam da ajuda dos anticoncepcionais hormonais para lidar com eles. Que bom que esses recursos existem: afinal, eles nos dão mais liberdade de escolha.
Ok. Mas sempre há outro lado. Por exemplo: logo após o sangramento, a noção espacial fica mais aguçada.
Mais para perto da ovulação, acontece um pico na capacidade de comunicação. Isso se reflete nas habilidades verbais e também na destreza em interpretar os sentimentos dos outros. É a tal empatia, palavra em alta nos dias atuais.
‘‘Uma das pesquisas mostra que as mulheres se mostraram mais aptas a decodificar as expressões de medo’’, aponta Marina.
Diante de alguém que demonstra medo, o homem tende a acionar o mecanismo de luta ou fuga – uma reação atrelada ao gênero masculino desde épocas primitivas.
Enquanto os homens saíam para caçar, a mulher ficava dentro das cavernas, cuidando da prole. Quando a criança sentia medo, a mãe tinha que entender que raio de medo era aquele: se real ou imaginário. Nosso corpo se adaptou a isso.
Ainda hoje, vê-se que, na hora de tomar decisões, as mulheres levam mais aspectos em conta, considerando interesses coletivos, enquanto os machos tendem à objetividade.
Outro estudo mostra que, se uma mulher quer parar de fumar, antes da ovulação é o melhor momento para começar.
Se isso é válido para uma decisão dessas, quem sabe nesse momento estejamos mais alinhadas para entender que rumos tomar e que meios usar para chegar lá.
Há até mesmo estudos mostrando que o tamanho do hipocampo aumenta no período ovulatório – essa região é a responsável por guardar memórias e também importante nas habilidades sociais.
Marina lembra também de uma reclamação comum entre as usuárias da pílula: a baixa na libido, fruto da estabilidade do estrógeno no sangue provocada pelo anticoncepcional.
Sonhos
O estudo dos sonhos das mulheres de acordo com o sobe e desce hormonal mostra uma pista para compreender isso: nas fases pré-ovulatórias, quando o estrógeno está alto, os sonhos costumam ser mais positivos, ter mais figuras masculinas e conteúdo erótico.
No pré-menstrual, quando esse hormônio cai vertiginosamente, o conteúdo dos sonhos tende a ser mais negativo e com mais figuras femininas.
Ou seja: se há um baile de hormônios rolando solto dentro do seu corpo, quem sabe seja uma boa ideia aprender a dançar conforme essa música, em vez de querer silenciá-la.
‘‘Para quem tem ciclo regular e natural, é interessante saber sobre o seu ciclo’’, opina Renata Mendes, ginecologista e obstetra da Célula Mater. Para isso, ela indica apps como o Clue, que ajudam a manter um arquivo de dados e também de sintomas.
Escola de menstruação
A pedagoga espanhola Erika Irusta, especialista em ciclo menstrual, foi além. Ela fundou, veja só, uma escola de menstruação. A ideia foi construir uma plataforma em que as mulheres dividissem umas com as outras suas experiências com o ciclo, formando um banco de dados e de trocas de informações.
A apresentação do projeto, intitulado Soy1Soy4, é enfática: ‘‘Nunca somos a mesma. Portanto, tentar ser sempre uma única e igual nos deixa em farrapos.
Dar uma de mulher perfeita, que ‘não se deixa levar por seus hormônios‘, nos adoece e nos limita. Você não é esquisita porque chora vendo uma propaganda de detergente. Nem está doente porque não consegue engolir a raiva e explode. Você é cíclica num mundo que pretende ser linear. Você é um círculo que querem enquadrar’’.
Além de Erika, outras mulheres vêm erguendo a bandeira vermelha.
Em 2015, depois de um debate à presidência dos Estados Unidos, irritado com as perguntas da mediadora, o então candidato Donald Trump soltou o seguinte comentário: ‘‘Ela estava soltando sangue pelos olhos e não sei mais por onde’’. A fala motivou a criação da campanha #PeriodsAreNotAnInsult.
A hashtag foi usada na camiseta da corredora Kiran Gandhi, que completou a Maratona de Londres menstruada e sem absorvente. A reação de espanto que a mancha vermelha em sua calça provocou ainda tem muito a dizer sobre um mundo em que apenas 12% das meninas têm acesso a absorventes higiênicos.
Não à toa, o Oscar de melhor documentário deste ano foi para Absorvendo o Tabu, que mostra como um método de fabricação de absorventes baratos está retirando o véu de vergonha e falta de informação que ainda resiste em torno do tema nos vilarejos do interior da Índia.
Para manter seu ciclo em ordem, o corpo pede uma vida saudável: ‘‘Os principais fatores que afetam a regularidade menstrual são alimentação, exercícios, síndromes dos ovários policísticos e distúrbios da tireoide’’, lembra Renata Mendes.
Mas fatores emocionais, como estresse, podem igualmente alterar o passo do ciclo.
‘‘O nosso papel como ginecologistas também está em mostrar às pacientes que ser mulher é normal’’, avalia Marina.
Sangrar, ter corrimentos, ficar inchada, tudo isso faz parte. Somos voláteis. Quem sabe, por isso, podemos voar.
Fonte: Revista Célula Mater Press, Edição no 20, Junho de 2019.
Responsável Técnico: Carlos Eduardo Czeresnia CRM 20245
Jornalista Responsável: Débora Mamber Czeresnia
Ilustração de Carolina Itzá